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A resistência final

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Lá vou eu de novo, tentar escrever sobre Led Zeppelin. Para você ter uma ideia, faz uns dez anos que eu tento, e sempre falho.

Procuro muito por momentos interessantes na história recente da música — rock, jazz, MPB —, e de vez em quando encontro alguma coisa que me chama a atenção e que, penso, vai ser interessante escrever a respeito. Nunca tenho dificuldade de escrever sobre o que vejo nesses momentos, e às vezes até que sai alguma coisa que presta. Mas Led Zeppelin? Puxa, como é difícil. 

Obviamente que histórias não faltam. Momentos absolutamente formidáveis sobram na história dessa que muitos consideram a maior coisa que já surgiu em termos de rock’n’roll na História da Humanidade. E os que pensam assim só estariam errados porque a descrição fica aquém do que eles foram. Você acha que não? Tudo bem, claro. Eu poderia achar que não, também, mas aí nós dois estaríamos errados. Enfim, justamente por serem grandes demais, acho dificílimo escrever sobre eles.

Mas, mesmo assim, vamos lá. Mais uma tentativa. Agora vai.

______________

Corria o ano de 1975, e a banda estava no topo do mundo. O jornalista Mick Wall se referia a esse momento na história da banda quando escolheu o título para sua biografia do Led Zeppelin: chama-se Quando Os Gigantes Caminhavam Sobre A Terra. Essa é uma excelente descrição para o período em que o Led Zeppelin esteve ativo, e não por poucas razões. 

A banda havia terminado a turnê de seu último disco, o genial álbum duplo Physical Graffiti, que contém a fabulosa canção Kashmir, uma das maiores composições do rock de todos os tempos. Quer ter uma ideia do que era o Led Zeppelin daqueles tempos? Assista The Song Remains The Same, o DVD ao vivo da banda, lançado em 1976, com shows da época.

Cansados, ricos, e sendo observados pelo olho voluntarioso e ávido do fisco britânico, os meninos decidiram dar um tempo fora do Reino Unido, para não deixarem nos cofres da rainha boa parte de sua suada grana. Para alegarem outro domicílio, não podiam passar mais do que alguns dias seguidos na Grã-Bretanha, e decidiram flanar por esse mundão de Meu Deus por vários meses. Boa parte do tempo passaram no Marrocos, um local que sempre foi muito caro tanto para Jimmy Page quanto para Robert Plant.

Um parêntese: anos depois, em 1990, os dois retornariam ao Marrocos para buscar inspiração, músicos e cenários para a gravação do genial CD/DVD No Quarter, uma produção maravilhosa da dupla no período pós-Zeppelin. Fecha parênteses.

Foi nesse período, entre 1975 e 1976, que escreveram a maior parte do material de Presence, que seria o sétimo álbum de estúdio da banda. Na estrada, sem compromissos, com grana saindo pelo ladrão, Jimmy Page e Robert Plant trabalharam no material do disco, sem saber que ele conteria uma das mais fabulosas composições da banda: Achilles Last Stand.

A canção, aliás, fala sobre essa debandada para longe do Reino Unido: os versos iniciais são uma referência direta a ela:

It was an April morning when they told us we should go,
And as I turned to you, you smiled at me,
How could we say no?

Era uma manhã de abril quando eles disseram que tínhamos que ir,/ e quando me virei para você, você sorriu para mim,/ como poderíamos dizer não? Aliás, Page e Plant sabiam que essa viagem seria um hiato mais longo, o que encontra reflexo direto nos versos que preveem mais música no retorno da banda:

Oh, the songs to sing
When we at last return again

O título da canção — que ficou com o nome The Wheelchair Song por algum tempo após ter sido composta —é uma brincadeira com Robert Plant. O vocalista sofreu um acidente automobilístico que danificou bastante seu calcanhar. O medo, inclusive, era de que ele não conseguiria andar mais. A música foi composta com ele nesse estado: em uma cadeira de rodas, sem a menor possibilidade de pôr os pés no chão. O título final é um enorme elogio a Plant: Aquiles era um guerreiro poderoso, tornado invencível por sua mãe, a ninfa Thetis, que o mergulhou no rio Styx para torná-lo imortal. Infelizmente ela teve que segurá-lo pelo calcanhar, que ficou sem ser banhado, e finalmente o levou à morte. Plant era visto, à época, como um vocalista sem igual, um verdadeiro deus do rock, e o fato de ter sucumbido pelo calcanhar não passou despercebido.

A letra também teve influência da obra do poeta William Blake, que Plant lia durante a criação do álbum Presence.

Oh the sweet refrain
Soothes the soul and calms the pain
Oh Albion remains
Sleeping now to rise again

Oh, o doce refrão/Conforta a alma e acalma a dor/Oh Albion permanece/Dormindo agora para se erguer novamente. A referência a Albion vem do homem primordial da mitologia de Blake, cujo nome foi retirado do título ancestral das terras da Bretanha, que recebeu esse nome — Bretanha — a partir do domínio romano, mas que antes da invasão era conhecida localmente como Albion. O verso “Oh, Albion remains/ sleeping now to rise again” é mais uma referência à volta triunfal da banda à terra natal.

Musicalmente, Achilles Last Stand é um portento da ordem de Kashmir e Stairway to Heaven, as duas canções mais celebradas do Led Zeppelin. Aliás, segundo pesquisa de 2012 junto aos fãs (conduzida pela revista Rolling Stone), Achilles Last Stand é a terceira canção da banda em termos de preferência. Em sua gravação original, tem a duração de 10:26, uma das mais longas da banda, ficando atrás apenas de In My Time Of Dying (11:08) e Carouselambra (10:28). E não é um portento apenas por sua duração, claro. A música é épica, complexa, de uma energia quase bélica, como se pudéssemos ver — quando fechamos os olhos — os cavalos dos invasores se aproximando pelo enorme campo à nossa frente, guerreiros brandindo espadas e lanças.

Aliás, outro parêntese: quer uma experiência fora do comum? Assista as cenas da batalha dos campos de Pelenor — o ápice de O Retorno do Rei, a terceira parte da trilogia de O Senhor dos Anéis — ao som de Achilles Last Stand, iniciando a canção a partir do momento em que o Rei Theoden grita “Avante Eorlingas!” e seu exército ataca os orcs.

Jimmy Page sempre demonstrou muito orgulho pelo solo de Achilles Last Stand, comparando-o com o icônico solo de Stairway to Heaven. E esse orgulho se justifica: apesar de menos conhecido (e muito menos batido), o solo de Achilles Last Stand é fenomenal. Na versão de estúdio, o solo principal começa em 3:42 e dura mais de um minuto e meio, um lamento dolorido, poético, apoteótico. Um complemento à voz de Robert Plant e um contraponto à energia do baixo de John Paul Jones e da bateria de John Bonham. Page também relatou em várias entrevistas o processo complexo que foi criar o efeito das guitarras ao longo da canção. Para começar, são tantas trilhas de guitarra que o próprio guitarrista afirmou ter perdido a conta de quantas, em alguns momentos todas sendo executadas ao mesmo tempo. A técnica de usar várias trilhas de guitarra havia sido introduzida no álbum Physical Graffiti, e ficou conhecida como “exército de guitarras”. Page gravou e mixou todas essas trilhas em uma única noite, criando um problemão para si mesmo: por mais que o efeito do exército de guitarras seja maravilhoso na versão de estúdio, apenas Shiva — com seus múltiplos braços — conseguiria replicá-lo ao vivo. Bom, mas falaremos sobre as versões ao vivo mais à frente.

Enquanto Plant viaja nos versos e Page entope a canção com fabulosos ritmos e riffs de guitarra, o baixista John Paul Jones segura a pegada épica com seu baixo que estabelece um tom gigantesco, grave e constante para a faixa, algo que prende a atenção logo depois dos arpégios iniciais da guitarra de Page, te segura pelo colarinho, bafeja na sua cara e é como se dissesse “Se parar de prestar atenção, te encho de porrada.”

Jones sempre foi, sem dúvida, o mais quieto dos zeppelins. Já era casado quando se juntou à banda, e por ter responsabilidades com o novo lar, teve dúvidas se trocava a estabilidade do estúdio — já era um músico e arranjador de estúdio bem conhecido, e não faltava trabalho — para se lançar à aventura da vida de shows e discos. Acho que ele tomou a decisão certa. E não é porque sempre foi mais quieto e menos folclórico que seus companheiros de banda que é menos que os outros três. É um dos maiores baixistas de todos os tempos, e seu conhecimento íntimo de arranjos e engenharia de som foi fundamental para forjar — ao lado de Jimmy Page — o som quase sobrenatural de tão bom do Led Zeppelin.

Mas não há como falar de Achilles Last Stand — ou de qualquer outra coisa referente ao Led Zeppelin — sem mencionar a bateria de John Bonham. Não tem como negar: Bonham é o melhor baterista de todos tempos, sem a menor sombra de dúvida (e tenho pena de você se discorda, mas não vou perder meu tempo discutindo o que deveria ser óbvio para todo mundo). A superioridade gritante de Bonham fica brutalmente aparente em Achilles Last Stand. Lembra da menção a Shiva, tocando várias guitarras para livrar a barra do Jimmy Page nos shows ao vivo? Então, a impressão que se tem é que o deus indiano não estava disponível, pois tinha assumido a bateria de Bonham. O ritmo é, ao mesmo tempo, frenético, explosivo, contundente, e nunca deixa de ser preciso, militar, milimétrico. A energia é tanta que dá a impressão de que alguém cortasse a eletricidade do estádio, bastaria ligar os fios nas baquetas de John Bonham e as luzes se manteriam acesas. O estilo “220V, para mim é meia-bomba” seria o algoz do baterista em poucos anos. Mas, em Achilles Last Stand, é um presente para quem ouve. Por várias vezes me peguei aumentando a velocidade na estrada — em alguns casos, perigosamente — ao ouvir essa canção, e não há dúvida de que isso se deve em boa parte à bateria alucinante. Faça você um teste: quando estiver chateado por ter de ir a uma reunião em uma segunda-feira de manhã, com o prospecto de uma semana complicada à frente: coloque essa música e aumente o volume — no carro ou no fone de ouvido —, e veja o efeito. No mínimo, você vai ficar com uma energia raivosa de dar gosto, o que os demais à sua volta perceberão como um sinal de “Cuidado com o cão”.

O Led Zeppelin retornou “à estrada” no início de 1977, e logo de cara já incluiu Achilles Last Stand no rol de músicas dos shows. Ao longo de todo o ano, a canção foi cantada, e é possível perceber que, nas primeiras tentativas — apesar de todos os elementos já estarem lá — a execução ainda precisava de alguns ajustes. Mas, aos poucos, com o empenho dos quatro músicos, a canção foi se encaixando, ganhando forma. A meu ver, a melhor versão ao vivo de Achilles Last Stand foi no show de Landover, no estado de Maryland nos EUA, em 30 de maio de 1977 (o bilhete para o show é a foto de capa desse artigo). A banda iniciara a turnê de 77 em 03 de abril e o show de Maryland já era o 18º, ou seja, os meninos já haviam se acertado milimetricamente. Ouça e tire sua conclusão:

Para comparar, você pode entrar na página de bootlegs do SugarMegs e ouvir todas elas (e tudo mais que foi gravado pelo Led Zeppelin, aliás). De nada.

Mas voltemos um pouco no tempo, para 1976. Nos poucos momentos em que passaram na Inglaterra, e longe de casa em um estúdio em Munique, o quarteto gravou todo o álbum Presence, com Robert Plant ainda se movendo com dificuldade. Aliás, em uma das sessões de gravação, ele voltou a ferir o calcanhar, e essa tentativa de parar em pé que causou dano, deu nome à canção: “a última vez que Aquiles ficou de pé”, um trocadilho com o termo stand que, quando é ligado à guerra e a guerreiros, costuma significar “linha de defesa”.

E é esse significado — mais poético e grandioso — que, a meu ver, é profético: a última linha de defesa, a resistência final.

Digo isso pelo fato de esse ter sido o último sucesso estrondoso, épico da banda. O Led Zeppelin faria seu último show em 7 de julho de 1980 — puxa, quarenta anos atrás —, em Berlim, e de 1977 a 1980 continuaria sendo a maior banda do planeta. Mas momentos como Achilles Last Stand não viriam mais. Sim, a banda continuaria cantando seus sucessos, pondo a casa abaixo em todas as oportunidades; sim, a banda ainda produziria mais um excelente álbum de estúdio, In Through The Out Door, lançado em 1979 (CODA, lançado “postumamente” em 1982, é uma compilação de material antigo da banda); sim, a banda continuaria a brilhar nos palcos com seu rock, e a se esbaldar em sexo e drogas nas horas vagas; sim, a banda continuaria a ser o Led Zeppelin até seu final, e mais ainda depois dele. Contudo, o último ápice, o último grande estrondo de som e fúria criado por esse olimpo — a resistência final —, penso, seria Achilles Last Stand. Depois de todo furacão, os ventos, as chuvas e as enchentes continuam destruidores, e só se acalmam muito tempo depois do clímax. Achilles Last Stand seria isso: a última grande devastação do furacão Led Zeppelin, a última linha de defesa da banda, por mais que seus efeitos se fizessem sentir por anos, ainda.

Toda força da natureza deixa suas marcas, e de vez em quando surgem novas “edições”. Furacões vêm e vão, assim como enchentes, terremotos e por aí vai. Mas, sempre que vem um novo leviatã, ele vai ser comparado com “aquele”, o pai de todos os leviatãs pelos quais passamos em vida. No Brasil, por exemplo, todos os incêndios em prédios serão para sempre comparados com o incêndio do Joelma, ocorrido em 1º de setembro de 1974, na capital paulista. E todos os que vierem depois “daquele”, vão provocar furor, claro, mas nunca como o Joelma.

Sempre que um novo furacão passa, os olhos dos antigos, que viveram a passagem “daquele” vão brilhar, e um sorriso doído vai cruzar suas faces por um décimo de segundo. Esses antigos vão olhar para alguma cicatriz deixada na cidade — um novo prédio que foi erigido no lugar de um anterior que foi destruído; uma seção no cemitério com centenas de lápides com datas dentro de uma mesma semana; os escombros antigos de um deslizamento que engoliu um bairro — e vão pensar “é, esse foi forte, mas nada que se compara àquele, daquela vez”.

Assim é Led Zeppelin: a marca deixada pelo nível da água a dois metros e meio do chão, ainda visível no muro, por conta de uma enchente que nunca mais vai se repetir em nosso tempo de vida, ou a cidade fantasma de Pripyat, resultado do desastre em Chernobyl, ou os escombros de Nova Orleans depois do Katrina. Um evento transformador, indescritível, sem par.

Achilles Last Stand sobrevive na memória do rock como o último grande estrondo dessa força da natureza.

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